sábado, 5 de março de 2011

Conto: "A Sociedade"

Gaspar foi a melhor pessoa que já conheci, mesmo – e não sei como isso poderia ser possível – sendo meu pai. Seu carisma extremo e sua presença agradabilíssima lhe faziam ser requerido em todos os locais e eventos, importantes ou não, sendo que não se furtava de comparecer a nenhum. Quando discursava, ha, seus discursos! Pedia a atenção com a calma de um monge e imediatamente cessavam todas as conversas, pois não havia cidadão presente que não estivesse ouvido falar de tal habilidade ou por já a terem presenciado anteriormente.

Quando começava, todos como que entravam em um transe, ouvindo as frases se costurarem umas às outras transidas de sabedoria e conhecimento de causa. Falava de filosofia aos pobres, de miséria aos ricos, de dor aos sadios, de saúde aos doentes. Dos assuntos mais complexos das maneiras mais acessíveis. A voz era estentórea; o olhar, argucioso; a inteligência, magnificente. Ora falava baixo, penetrando no íntimo dos interlocutores, ora subia o tom, sobressaltando a todos. Seus gestos eram largos, porém medidos e decididos. Quando terminava, o mundo vinha abaixo tamanho o volume de palmas desferidas por todos os presentes que, jubilosos, agradeciam pela oportunidade de presenciar tal fenômeno. Se o evento era uma festa de caridade, preenchiam gordos cheques. Se era uma formatura, teciam odes à juventude que, no porvir, levariam o Brasil a uma irrefreável jornada em direção ao desenvolvimento. Se era um enterro, choravam convulsivamente pelo defunto, lamentando com pesar ainda mais profundo pela grande perda.

Além da habilidade retórica, papai também foi dotado da capacidade de auxiliar a outrem. Sempre dizia uma palavra de incentivo animadora, de consolo confortadora ou algum conselho certeiro. Gozava de grande prestígio junto à comunidade, apesar de ser modesto funcionário público. Ia bem, era metódico, fazia o que lhe agradasse, não queria muito, não se abalava por pouco, enfim, não tinha do que reclamar.

Um dia recebeu uma carta.

Eu mesmo a vi ser enfiada por debaixo da porta, um grande envelope cinza, timbrado com o símbolo de uma quimera. Não havia selo algum, o que denotava não ter sido entregue pelo Correio. "A Sociedade” , foi só o que pude ler, grafado em grandes letras góticas no topo da página, quando abriu o envelope. Não me deixou ler o restante do conteúdo, o que fez compenetradamente, repetidas vezes. Por fim, devolveu a página ao envelope e não falou mais sobre o assunto. A princípio, esqueci do fato, mas ele passou a sair todas às quintas-feiras para local que todos ignoravam, onde ficava durante cerca de duas horas. Foi assim durante alguns anos, período no qual fez apenas uma concessão sobre sua atividade secreta: Trazer para jantar em casa dois, na falta de melhor palavra, amigos feitos no local aonde ia. Eram dois senhores idosos e barbudos, cada qual mais sério que o outro. Falavam com um sotaque arrastado, que não consegui identificar. Ambos usavam anéis e carregavam valises estampadas com a quimera. Meu pai os tratava com bastante respeito e deferência. A visita durou menos de duas e, como é eminente, não serviu para aplacar minha curiosidade nem para desfazer o mistério.

Um dia, meu pai ficou doente.

Nessa época, eu já estava no Ensino Médio. Cheguei da aula e pela primeira vez em um dia de semana, vi-o em casa. Estava deitado, com muita febre. Em pouco tempo, o quadro evoluiu para uma patologia diversa de qualquer uma que já tivesse visto. Uma espécie de limo esverdeado e mal-cheiroso cobriu sua pele, as unhas racharam-se todas e ele não podia se levantar. Vários médicos foram chamados, jamais chegando a um consenso. Se o primeiro atribuía a uma doença rara o ocorrido, o segundo contestava logo, dizendo tratar-se de uma nova ordem de enfermidade, e recomendava que nada fosse ministrado enquanto não houvesse mais informações. Discutiam acaloradamente quando chegou um terceiro, acusando-os de irresponsáveis, augurando que qualquer destas medidas impreterivelmente levariam o paciente à morte, e receitava um medicamento.

Enquanto a comunidade médica local se engalfinhava em debates técnicos e científicos, meu pai piorava. Mal se podia entrar no quarto, dado o cheiro pestilento exalado por ele, que emagreceu violentamente. A pele não somente era mefítica, mas adquiriu um aspecto seco e envelhecido. Os olhos ficaram baços. Não conversava. Um dia, morreu. O corpo se assemelhava ao de uma múmia egípcia ou um zumbi, nem de perto nem de longe poder-se-ia dizer ser do homem corpulento que fora. A causa mortis continuou um enigma.

Nos anos que se seguiram, boas quantias de dinheiro foram depositadas na conta de mamãe, o que impediu qualquer dificuldade. Entrei para a universidade e, cedo, alcancei um cargo de chefia em uma grande empresa, o que me permitiu acumular riqueza e prosperidade. Durante anos entreguei boa parte desta fortuna para detetives particulares, firmas de investigação, agentes de milícias e informantes em geral para descobrir algo sobre os dois homens que recebemos em casa e seriam a chave para descobrir o que era a tal “sociedade”. Subornei todas as pessoas que pudessem ajudar em algo, cometi vilezas e paguei para que as cometessem também. Tomei todos os caminhos possíveis e imagináveis. Se descobria que algum profissional renomado no ramo das investigações estava envolvido em outro serviço, oferecia dobro sobre dobro para trabalharem pra mim. Nada. No fim, todos desistiam, pois não havia uma pista, um ínfimo resquício sequer que permitisse a identificação dos sujeitos. Apesar de rico, supliquei com lágrimas nos olhos para que tentassem mais. No fim das contas, fiquei sozinho na procura, o que tempos depois me fez desistir também. Faz muito tempo que isso aconteceu, e já se tornava uma lembrança vaga e nublada da minha memória, um enigma fossilizado e impreterivelmente sem resposta, quando, da sala do me apartamento, vi um envelope grande ser enfiado por debaixo da porta. Era um envelope grande, cinzento, estampado com uma quimera. O mesmo envelope que tenho na frente agora.

2 comentários:

  1. SMUM - Sociedade Mate Um Curioso
    Parabens murilao! ótimo conto

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  2. "SMUM - Sociedade Mate Um Curioso"

    ahuehuhauheuhuahuheuhauhuea olha, é uma interpretação possível.

    Valeu.

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